Diogo Alves, o Assassino do Aqueduto

Diogo, que nascera Diego, atravessou montanhas, tão jovem, tão cheio de esperanças, com os pés marcados pela terra dura da Galícia. Filho de camponeses, olhou para Lisboa como quem olha um sonho, vendo nela promessas brilhantes. O aqueduto, serpente de pedra que rasgava o céu, parecia uma escultura de ouro ao sol, uma obra de poder. Mas para Diogo, o aqueduto seria o palco de sua descida ao inferno.

TALES

Writen by Nelson Viegas

5/8/202411 min ler

Diogo Alves chega a Lisboa no início da Monarquia Constitucional, que para quem não sabe acontece em 1820 com a revolução Liberal do Porto a 24 de Agosto e cujos efeitos chegam a Lisboa a 15 de Setembro.Diogo Alves era ainda uma criança, teria qualquer coisa como 10 anos de idade. Vinha da pobre Galiza, a partir da qual os mais afortunados teriam conseguido imigrar para a Argentina, já os mais pobres ou menos afortunados tinham em Lisboa o seu destino mais certo. Diogo Alves, ou Diego Alvarez, seu verdadeiro nome de batismo, vem para trabalhar, o mais que puder, para que quando tivesse que voltar à Galiza, onde deixou os pais, fosse um pouco menos pobre. Na época, Lisboa tinha fama de rica, grandes obras tinham sido construídas com o ouro proveniente do Brasil e a ideia de muito trabalho ainda prevalecia. Contudo, a crise que se aproximava já era evidente. D. João VI estava no Brasil enquanto Portugal estava a ser governado por ingleses, os quais tinham antes expulsado os Franceses de Napoleão, que nos governavam antes dos ingleses. No meio de tanta confusão social e política, Lisboa tinha agora abundância de água que em tempos tinha sido tão escassa. O Aqueduto das águas livres assim como o reservatório, conhecido como Mãe d'água das Amoreiras, e os respectivos chafarizes espalhados por Lisboa funcionavam em pleno, dando muito trabalho aos aguadeiros. O aqueduto era uma estrutura imponente, que desde Carenque onde nascia, para os lados de Sintra, até ao reservatório medía cerca de 14 quilómetros de cumprimento e não existia lugar algum na cidade que não permitisse a visão deste gigante de pedra. No vale de Alcântara a sua extensão era de quase um quilómetro e alcançava os sessenta e cinco metros de altura. Foi construído no reinado de D.João V por sugestão de Cláudio Gorgel do Amaral, procurador da cidade de Lisboa, mas foi o povo quem o pagou através de impostos sobre vários produtos, entre eles a carne, o vinho e o azeite.

Diogo Alves, ou “o pancadas” como era conhecido, começa a sua actividade como criado em várias casas senhoriais e a sua necessidade de aprovação fá-lo dedicado ao seu trabalho, granjeando-lhe fama de bom moço e também algum proveito. A seu tempo é promovido a trintanário, que para quem não sabe é ajudante de cocheiro e por fim a boleeiro, aparelhando os cavalos para as carruagens ou conduzindo-as. E fazia-o aparentemente bem feito, pois os seus serviços acabaram por ser bastante disputados por vários senhores. Mas o jogo, a bebida, as más companhias e também as mulheres, as de má fama, acabaram por levar a melhor sobre a vida deste pobre galego.

Consta que para os lados da calçada do Duque, como quem sobe para São Roque existia uma taberna conhecida como tasca da Joaquina do Forno, mesmo colado ao pátio do Marquês de Penalva, um sítio de má fama, onde nem a polícia se atrevia a ir. Talvez tenha sido aí que Diogo conheceu a sua Gertrudes Maria, de apelido Parreirinha e por ela se tenha perdido de amores. Mas há quem diga que a mesma tinha uma taberna em Palhavã, perto de Sete Rios e cuja entrada se fazia por uma parreira, daí o apelido. O certo é que Gertrudes, previamente casada e com dois filhos, uma menina e um menino, fazia-o sentir-se homem e, todo o garoto quer ser alguém e nada como uma mulher de má fama, experiente na vida, para saber tirar partido da ingenuidade do imberbe. Diogo começou a beber e a jogar, e como jovem apaixonado queria também impressionar a sua Gertrudes com prendas, mas o dinheiro, fruto do seu trabalho já não era suficiente para os seus gastos. O vício custa caro, seja ele o do jogo, o da bebida ou o do amor e Diogo não teve outra solução que enveredar pela vida do crime.

No início foram pequenos furtos e assaltos a incautos que se aventuravam a lugares menos bem frequentados, contudo o dia chegou em que tudo mudou. Inicialmente o seu plano era simples, queria apenas roubar alguém que tivesse mais dinheiro ainda que isso representasse um risco maior. O local escolhido foi o dito aqueduto das águas livres. Diogo sabia, tal como todos sabiam, que as passagens superiores do aqueduto sobre o vale de Alcântara eram usados pelos muitos mercadores que vendiam os seus produtos em Lisboa. A sua esperança era encontrar um ambulante tardio a quem a venda tivesse corrido bem, e quem sabe, o golpe seria a sua sorte.. Ainda assim, a ideia não lhe parecia boa, o local era exposto e a sua fuga podia ser barrada em qualquer das saídas, caso o assaltado se lembrasse de gritar por socorro. Por outro lado, teria de ser capaz de se esconder algures enquanto esperava pelo mercador certo. O local acabou por ser uma daquelas passagens que pareciam guaritas ou chaminés mas que apenas os funcionários da companhia das águas tinham acesso para fazerem a manutenção. Resolveu inspecionar atentamente o local, não que não o conhecesse, pois várias vezes já tinha feito essa travessia, mas agora precisava prestar atenção aos pormenores. Inspecionou disfarçadamente as portas e percebeu que tinham boas fechaduras e bons ferrolhos. Arrombá-las estava fora de questão. Precisava de uma chave.

Os dias que se seguiram passou-os a tentar identificar algum funcionário da companhia que tivesse em sua posse uma dessas chaves. Não foi preciso esperar muito pois, todos os dias uma ronda era feita às instalações e o guarda, se é que assim pode ser chamado, tinha pendurado um aro com todas as chaves presas à cintura por uma corrente. No final da ronda seguiu-o e percebeu que as chaves ficavam na casa da guarda junto à mãe d’água. Pensou em esperar pela noite e assaltar as instalações quando se apercebeu que os guardas, o que tinha acabado de chegar e o que já lá estava, saíram juntos em direção à taberna mais próxima sem fecharem a porta à chave. Encoberto pelas sombras entrou na casa e abrindo o chaveiro pegou num dos molhos, existiam pelo menos três por isso confiou que cada guarda tivesse o seu e que seriam todos iguais, saindo tão rápido quanto entrou. A primeira parte do plano estava cumprida, só lhe restava agora esperar que o dia depois de amanhã chegasse para concretizar a segunda parte.

Esperou que ficasse noite, e em momento que ninguém caminhava pelo aqueduto, “o pancada” dirigiu-se rapidamente à porta que lhe interessava e, testando as chaves na fechadura encontrou aquela que abriu a porta. Tirou-a do chaveiro e deitou as restantes pela borda fora entrando sem saber exatamente o que o esperava do lado de dentro. Levou algum tempo para que os seus olhos se habituassem à escuridão, contudo, naquele momento bastava-lhe saber que estava sozinho naquele lugar. Ele e a água que corria. Em outras circunstâncias tentaria perceber como funcionava o sistema de transporte da água, mas agora apenas queria fazer o seu assalto. Entreabriu a porta o suficiente para ver quem vinha pela passagem e viu duas mulheres que se aproximavam, mas logo entrou no corredor um outro homem também, cerca de duzentos metros atrás. Descartou a hipótese de assaltar qualquer um dos dois. Se assaltasse as mulheres, o homem viria em seu auxílio, se deixasse passar as mulheres e se fizesse ao homem, as mulheres gritariam por socorro, por isso deixou-os passar. Não foi preciso muito tempo para que um outro homem entrasse no aqueduto, desta vez sem que ninguém o seguisse. Quando estava suficientemente perto, Diogo reconheceu-o como sendo um dos que vendiam ali para os lados de Campo de Ourique, - esperava que o dia tivesse rendido bem, pensou. Deixou-o passar pela porta e saindo-lhe pela retaguarda encostou-lhe a faca nas costas ao mesmo tempo que dizia: - Alto! Dá-me a tua bolsa ou morres. E sem esperar por resposta meteu-lhe as mãos nos bolsos à procura da bolsa. O homem não se mexia, surpreso e paralizado pelo medo, mas quando sentiu que a bolsa com todo o proveito do seu dia de trabalho, e mais algum, se lhe escapulia, virou-se para a tentar recuperar dando de caras com “o pancada”. - Ahh bandido, disse ele, eu conheço-te! Tu és o da “Parreirinha” - .

Diogo preparava-se para fugir correndo, mas quando se percebeu identificado, sentiu a vida em risco e com a corda no pescoço, esticou o braço com a faca na mão tentando espetar o coração do homem. Este desviou-se mas não o suficiente, a faca espetou o seu braço esquerdo levando-o a soltar um urro de dor ao mesmo tempo que jogava a outra mão grossa ao pescoço do pancada. Os dois envolveram-se numa luta que foi rápida, principalmente para o pobre mercador, que se viu jogado do alto dos sessenta e cinco metros do pilar central do aqueduto. Encostado ao muro, o “pancadas” observava enquanto este caía de costas, esbracejando como que querendo segurar o ar, os olhos abertos de terror fitando o “pancadas” que sorria malevolamente. Apanhou a bolsa e a faca que estavam caídas no chão e entrou no seu esconderijo para contar o dinheiro, tal a sua ganância e malvadez, quando se apercebeu de passos no corredor. Espreitou pela porta e uma mulher caminhava só e em passo acelerado. Esperou que passasse também pela porta mas desta vez fez diferente. Saiu-lhe pela retaguarda e sem fazer qualquer barulho passou-lhe o braço esquerdo pelo pescoço enquanto que com a mão direita lhe tapou a boca para que não gritasse. A mulher tentou debater-se mas o aperto era de tal maneira forte que rapidamente perdeu os sentidos desfalecendo nos braços do bandido. Este não perdeu tempo. Revistou-a e tirou-lhe todos os seus pertences, uma bolsa com dinheiro e um fio de ouro que ficaria bem no pescoço da sua “parreirinha”. Satisfeito consigo mesmo pela rapidez com que deu o golpe, pegou na mulher e jogou-a também pelo aqueduto abaixo, não se dando ao trabalho de olhar para ela enquanto caía. Na manhã do dia seguinte foi um alvoroço nas hortas junto à ribeira que fluía por baixo do aqueduto quando os dois corpos foram encontrados a poucos metros entre si, partidos e desfigurados pela força do embate. Ninguém desconfiou do crime, mas logo começou o boato que se teriam suicidado quando souberam que a sua relação amorosa tinha sido descoberta. Quem diria que o Alberto, mercador respeitado, casado e pai de filhos tinha um caso com a Aldoínda, mulher também casada e de boa fama. Como as aparências enganam, pensaram entre si…

A onda de crimes de Diogo Alves continuou, ao abrigo do álibi do suícidio que o aqueduto proporcionava, e foram mais que muitos, alguns falam serem mais de sessenta aqueles que lá foram mortos, de tal maneira que em 1837 a passagem foi encerrada. É nessa altura que Diogo Alves e a sua amante, a Parreirinha, formam um bando de meliantes, na sua maioria galegos como ele, donde constam nomes como Manuel Joaquim da Silva, conhecido como Beiço Rachado, João das Pedras, conhecido como o enterrador e José Cândido Coelho, conhecido por Pé de Dança, e passam a assaltar as casas de alguns burgueses e fidalgos de Lisboa, casas que o próprio Pancadas conhecia bem por lá ter, em tempos, trabalhado.

Na cidade de Lisboa existia um médico, o dr. Pedro de Andrade, bastante conhecido e que vivia na também conhecida Rua das Flores. Um dos seus criados, o Manuel Alves, tinha por primo António Martins, caixeiro, também ele Galego e por sinal membro da malfadada quadrilha. Um dia, estando todos juntos na taberna da “parreirinha”, António puxou o seu primo para junto do bando. Após muitos copos de vinho soltou-se a língua do Manuel e descreveu com exatidão as riquezas da casa do patrão, assim como o local exato onde se escondia o cofre. Convidado a participar no golpe a troco da partilha do saque, Manuel determinou o dia do roubo na data que coincidiu com a ausência do dr. Andrade. Contudo persistia um problema. A viúva do irmão do médico vivia em casa do Dr. juntamente com os seus três filhos, duas meninas e um rapaz, o qual estudava em Coimbra. Tinham que prometer que não faziam mal à família, disse o Manuel. Todos concordaram que apenas estavam interessados no roubo. O dia chegou em que o médico viajou e ao entardecer, um a um, os meliantes foram entrando no prédio de habitação cujas portas tinham sido abertas pelo Manuel. A família encontrava-se reunida na sala e, tendo sido manietados e amordaçados, um a um também foram todos mortos, sem dó nem piedade e com muitos requintes de malvadez, a despeito dos gritos do Manuel que os lembrava terem prometido não fazer mal à família. Saqueada a casa abandonaram o local na penumbra da noite levando consigo o atarantado Manuel Alves.

Ao contrário dos crimes do aqueduto, nunca investigados em virtudes das condições da morte, eventual suicídio, assim como da natureza dos mortos, pessoas de pouca ou nenhuma importância ou influência, os crimes da Rua das Flores exigiam um investigação profunda e rápida. Era importante prender esses assassinos. Vários jornais da época fizeram referência ao acto, classificando-o de bárbaro e ignóbil. A opinião pública alinhava com os protestos contra uma Lisboa insegura. A polícia começa a investigar o roubo e os homicídios reunindo pistas que procurem levar à solução deste crime, contudo, a principal pista encontra-se desaparecida. Onde estava e onde está o criado Manuel Alves?

Entretanto Manuel Alves continuava a protestar contra a quebra do acordo e ameaçava denunciar o grupo, e, já na taberna da Parreirinha, Diogo corta-lhe a garganta com uma faca, matando-o de imediato. Enquanto uns se entretêm a reduzir o seu tamanho, separando os seus membros do seu corpo, outros cavam um buraco no chão onde o enterram. Mas não foi preciso muito para que a polícia descobrisse o seu rasto. As perguntas mais normais quando se investiga o desaparecimento de alguém são onde vive, com quem vive, que locais frequenta, quem são os seus familiares e quem são os seus amigos. Rapidamente chegam ao António Martins, o seu primo galego que, morto de medo, denuncia o grupo confessando os crimes.

Diogo Alves vivia com a Parreirinha num primeiro andar alugado em Arroios, onde a 28 de Outubro de 1839 foi preso, tal como noticiou o jornal da época “O Ecco”:

Continua a dar-se caça aos Ladrões ; no dia 28 foi preso em Arroios o Sr. Diogo Alves, Gallego, que tinha sido o Hoffman dos Cossacos rapinantes que assassinárão a familia Andrade [i.é, Mourão] ; este immortal Cidadão tinha tambem roubado ha pouco tempo a D. Carlos de Mascarenhas juncto a Campolide, além d'outras proezas mais.”

O Ecco: jornal critico, litterario e politico, n.ºs 421-488. No n.º 423, de 12 de Novembro de 1839,

Um após outro todos foram sendo capturados e presos, tendo os homens dado entrada na cadeia do Limoeiro enquanto a Parreirinha deu entrada na prisão do Aljube. A 13 de Julho de 1840 o grupo foi julgado e condenado pelos crimes, conhecidos como “da Rua das Flores”, contra a família de Pedro Andrade, no tribunal instalado para o efeito no Mosteiro dos Paulistas na Calçada do Combro. A onze de Dezembro de 1850 “Beiço Rachado” e António Palhares são executados no Cais do Tojo e a dezanove de Fevereiro de 1841 é a vez de Diogo Alves e António Martins serem enforcados no mesmo preciso local. Os restantes membros do grupo, onde se inclui a Parreirinha, depois de uma longa temporada na prisão acabaram deportados para as colônias.

Mas a história do Pancadas não termina com a sua morte. A sua cabeça foi separada do seu corpo para poder ser estudada pelos cientistas da época. Como funciona a mente de um assassino? Como é possível que aos 31 anos de idade alguém possa ter a seu cargo um acervo tão grande de crimes? A decapitada cabeça de Diogo Alves não trouxe respostas a todas estas perguntas, mas, caso alguém queira ainda endereçar essas questões ao tão afamado homicida, a sua cabeça encontra-se bem conservada na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa à espera da sua visita