O Assassinato de João VI

Eu sabia que tinha sido envenenado; só não sabia por quem. Enquanto eu, D. João VI, suportava dores abdominais, vômitos e diarreia, a suspeita crescia. Morri dez dias depois, em 10 de março de 1826. Foram necessários 174 anos para confirmar a causa: meus restos, examinados por investigadores, revelaram altos níveis de arsênio—o suficiente para me matar.

TALES

Written by Nelson Viegas

9/9/20242 min ler

Eu sabia que tinha sido envenenado; só não sabia por quem. Enquanto eu, D. João VI, suportava dores abdominais, vômitos e diarreia, a suspeita crescia. Morri dez dias depois, em 10 de março de 1826. Foram necessários 174 anos para confirmar a causa: meus restos, examinados por investigadores, revelaram altos níveis de arsênio—o suficiente para me matar. E assim, provou-se que fui vítima do primeiro regicídio em Portugal. Mas a pergunta permanece: quem me assassinou?

Olhando para trás, qualquer um poderia ter tido um motivo. Comecemos com Napoleão Bonaparte. Embora ele já estivesse morto há cinco anos quando faleci, tinha muitas razões para me querer fora de cena. Eu o enganei ao transferir a corte portuguesa para o Brasil em 1807. Alguns viam isso como covardia, mas para mim foi estratégico. Ao abandonar temporariamente Portugal, evitei render-me ao exército de Napoleão, preservei nossa aliança com a Inglaterra e mantive Portugal fora de seu alcance. Embora minha decisão fosse controversa, permitiu-nos recuperar nossas terras em 1811.

O desprezo de Napoleão por mim era evidente, e não me surpreenderia se ele tivesse buscado vingança postumamente. Afinal, frustrei seus planos de dividir Portugal entre França e Espanha, e apoiei os britânicos na derrota de suas forças em solo português.

Depois, há minha esposa, Carlota Joaquina. Casamo-nos jovens, em um arranjo político, e nosso relacionamento deteriorou ao longo dos anos. Ambiciosa e absolutista, ela buscava poder, mesmo que isso significasse minar meu governo. Ela conspirou para tomar o trono quando eu estava doente, tramou sua própria ascensão na América do Sul e desafiava constantemente minha autoridade. Apesar da distância entre nós, eu a amava. No entanto, politicamente, minha morte teria servido a seus objetivos, colocando nosso filho Miguel no trono, favorecendo uma monarquia absolutista, em oposição à direção liberal que eu estava tomando.

Miguel, por sua vez, também tinha suas razões. Assim como a mãe, ele era absolutista, e com minha morte, o caminho para o poder estaria claro. Embora Pedro, meu filho mais velho, fosse o herdeiro legítimo, sua declaração de independência do Brasil o tornava inelegível para governar Portugal. Isso deixava Miguel como o próximo na linha sucessória, e minha morte aceleraria sua ascensão.

Mas quem realmente me matou? Napoleão, Carlota, Pedro ou Miguel? Como se vê, nenhum deles foi o responsável. Fui eu quem me envenenei. Veja, eu tinha uma paixão por comida, especialmente pratos do Brasil. Quando voltei a Portugal, trouxe sementes e plantas brasileiras, incluindo a mandioca, um alimento básico na minha dieta. Infelizmente, a variedade cultivada aqui era diferente da do Brasil—amarga e tóxica. A mandioca contém cianeto, e os portugueses não sabiam como processá-la corretamente. Com o tempo, meu consumo diário de mandioca foi lentamente me envenenando.

Para piorar a tragédia, o arsênio era amplamente utilizado como remédio na época, e fui tratado com grandes doses para aliviar meus males, sem saber que isso estava agravando os efeitos do cianeto. Quanto mais eu comia mandioca, mais arsênio recebia, e o ciclo de envenenamento continuava até que meu corpo cedeu.

No fim das contas, o mistério da minha morte não foi um caso de assassinato. Foi minha própria indulgência com a mandioca e os tratamentos médicos equivocados da época que selaram meu destino. Ninguém mais tem culpa—sou o arquiteto da minha própria desgraça.